Convertendo o desconforto em ação

Emicida em uma conversa sincera sobre Diversidade nos Negócios
No segundo dia do evento Conecta Imobi de 2021, tivemos o prazer e a honra de chamar ao palco o rapper Emicida. Também no palco, nossos hosts: Genesson Honorato, Gerente de Employer Branding e Diversidade; e Samia Marçon, Marketing Manager – ambos da OLX Brasil.
Emicida, através da sua trajetória, leva a voz da periferia para onde ela nunca tinha sido ouvida. E através da sua música, faz com que pessoas de diferentes opiniões e classes sociais se identifiquem com um mesmo sentimento: a necessidade de transformação.
Com uma visão de mundo diferenciada, tornou-se formador de opinião e já é considerado um pensador extremamente relevante em nosso tempo e seus projetos são pensados para dialogar com o mundo. São experimentos sociais.
Para construir algumas pontes onde possa voltar a esperança, ele compartilhou reflexões para pensarmos, juntos, num futuro.
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Quebrando expectativas
Hoje, pessoas e empresas têm expectativas bem definidas sobre o discurso que reforça diversidade e inclusão. Geralmente, espera-se que palestras desse tema apresentem a importância da representatividade e dados estatísticos que suportam a relevância do tema e da estratégia para os negócios.
Emicida, no entanto, não veio para suprir essas expectativas e sim para partilhar sua experiência e deixar que, baseados em nossas próprias experiências, cheguemos às conclusões.
“No final, eu acredito que isso tudo é a respeito do quão sincero ou sincera você vai conseguir ser; e traduzir isso em ações quando a vida te fizer perguntas difíceis.”
Um pouco da história de São Paulo
Emicida nos guia por uma viagem ao início da ocupação do que hoje é a cidade de São Paulo, sua cidade natal. Cidade que, até o começo do século XIX, era irrelevante do ponto de vista econômico: uma vila sem grande protagonismo, desde o grande “descobrimento”.
Foi a expansão do cultivo do café, no oeste paulista, que mudou tudo. Mesmo com o sistema escravista já em crise, São Paulo começou a trazer toda a mão de obra escravizada disponível, o que super aquece o tráfico interno de pessoas escravizadas. Chegando ao cenário, em 1870, de que dos 32 mil habitantes de São Paulo, um terço já era de pessoas negras.
Esse movimento gera uma crise que dá início a um processo de imigração, primeiro subsidiada e depois talvez voluntária, de trabalhadores europeus.
“Essa estratégia vem se acoplar perfeitamente ao que podemos chamar de processo de embranquecimento do país. Uma vez que já naquele período era perceptível a imensa quantidade de africanos sequestrados e seus descendentes.”
Ele completa: “O Brasil corria o risco de se tornar um país negro e algo precisava ser feito. Então a demanda por braços justificava essa vinda massiva de imigrantes. E as leis de imigração se encarregam de filtrar esses corpos, impossibilitando a imigração espontânea de todo aquele que não fosse branco.”
É nessa lógica que se funda a pseudociência que fica conhecida nos meios intelectuais daquele momento como eugenia. Esse conceito ajudou a popularizar a ideia de pureza racial; e se alojou no poder estatal daquele período.
“A gente podia chamar isso de gestão de indesejados, e qualquer semelhança com as políticas desumanas do Brasil do século XXI não é mera coincidência.”

Não era sobre diversidade no mundo dos negócios?
Para quem está se perguntando isso, Emicida responde: “Eu gosto de pensar no Paulinho da Viola cantando ‘Meu filho tome cuidado, quando penso no futuro, não me esqueço do passado.”
Afinal, como disse o reverendo Sul-africano Desmond Tutu: “Não estudar o passado é o caminho mais curto para repeti-lo”.
O ponto é que todos esses fatos históricos tratam da presença de pessoas; da ocupação de um território pelo Homem: uma necessidade primeira que surge com esse fenômeno é a moradia. E, se queremos de fato criar melhores experiências nesse setor, é preciso estar ciente de como esse processo ocorreu.
Liberdade: o bairro, o exemplo
Um exemplo interessante e popular é o bairro da Liberdade, conhecido pela presença forte da imigração japonesa, seguida da coreana e taiwanesa. Isso é uma coisa que começa a acontecer na segunda metade do século XX, naquele mesmo contexto de imigração falado anteriormente.
Um ponto importante aqui, diz Emicida, é pensar que em 1890 pessoas asiáticas foram proibidas de entrar no Brasil por serem consideradas uma raça inferior, “ou seja: prejudicar o processo de branqueamento do país”.
Curiosamente, boa parte dessas pessoas têm a pele mais clara do que muitos europeus, como espanhóis e portugueses da península ibérica, “porém nessa anomalia cultural que é o conceito de ‘branco’, que nos prejudica até hoje, nem mesmo pessoas realmente brancas, do ponto de vista da cor da pele, estavam automaticamente incluídas nesse projeto.”
Na realidade, até mesmo o que parecia ciência, “era apenas o mais baixo, o mais rasteiro racismo.”
Antes de ser conhecido como Bairro da Liberdade, a região era conhecida como Bairro da Pólvora, uma região periférica da cidade, um bairro de negros. O próprio nome de “Liberdade” surge devido a um fato histórico: a execução de um soldado chamado Chaguinhas, um dos responsáveis por organizar um levante contra a coroa portuguesa, por conta de atrasos nos salários dos soldados.
Durante o processo de enforcamento do soldado ouvia-se os gritos de “Liberdade!”, e foi assim que a região ganhou o nome de Liberdade. Emicida também nos conta que a primeira escola de samba de São Paulo estava localizada no bairro, a Escola do Lava Pés.
Morre a vila, nasce a metrópole
O desenvolvimento da metrópole de São Paulo é marcado pela gentrificação, isto é: “a criação de um mecanismo que altera a composição social de um determinado lugar, de forma que os antigos moradores sejam obrigados a abandonar o local.”
“Esses corpos removidos a partir de uma engenharia social perversa, por serem corpos indesejados, são os corpos que alguns, hoje, chamam de ‘corpos racializados’. Ainda seguindo a lógica racista, comercial, que não faz sentido nenhum para a biologia: a gente continua compreendendo pessoas brancas simplesmente como ‘pessoas’, e pessoas negras, indígenas, e algumas asiáticas, como suas respectivas raças ou grupos. Quando todos nós sabemos que pessoas deviam ser somente pessoas e ponto final.”
Ainda se perguntando o que isso tem a ver com diversidade nos negócios?
Aqui vai uma provocação pertinente: olhando para seus clientes, para as posições de liderança da sua empresa, até mesmo para o line-up do evento: “No que esses lugares que eu falei se distanciam dessa engenharia perversa que faz a gestão dos indesejados?”
Entre as maiores economias do mundo, o Brasil é o único que é composto majoritariamente por pessoas negras e pardas, segundo o IBGE. Daí que Emicida nos sugere que uma das maiores âncoras que impedem o nosso país de levantar voo é o racismo, essa engenharia perversa, que deslocou as populações racializadas para a escassez e para a pobreza.
Muito mais que uma falha na matrix: um projeto em si
É importante perceber que a expansão de São Paulo foi regida por interesses do mercado, que estabelece uma lógica de centro -|- periferia, ricos -|- pobres.
O reflexo da produção sem precedentes dessa “terra onde os sonhos se realizam” é bastante claro em seu extremo oposto.
“Em 1950 o prefeito Ademar de Barros dizia que a cidade de são paulo não pode parar (…) o que se parece muito com o ‘acelera São Paulo’ dos últimos anos, e que se esquece completamente de que todo aquele que não breca, capota; ou fica sem combustível e não consegue chegar a seu destino.”
Os negócios e as perguntas difíceis
Especialmente no momento atual, é urgente que possamos produzir compaixão e humanidade; é uma responsabilidade da nossa geração.
“A minha cidade é a sobreposição de mil formas de ganância empresarial; ela é o paraíso das startups, mas ela também é o paraíso da indiferença.”
“E aí eu pergunto pra vocês: qual é a lógica racional de ter 60 mil pessoas morando na rua, no município mais rico do país, no século XXI? Observe o perfil dos novos moradores de rua, são famílias inteiras, com seus pertences, com filhos, idosos e animais de estimação.”
Emicida nos relata casos que mostram o esforço extremo dessas pessoas para manter a dignidade frente a esse momento de crise extrema e nos dá a pista: temos que perceber a realidade. E nos deixa algumas perguntas, talvez desconfortáveis, mas extremamente relevantes:
“Sua empresa, sua lógica, tem servido algo além dessa engenharia perversa, que faz essa cidade flertar com o colapso com uma frequência constrangedora?”
Como ele nos diz, é sobre o quão sincero você pode ser quando as perguntas difíceis aparecem.
“Responda para você mesmo, você pode se orgulhar de não ser parte do rolo compressor que destroça a vida de quem tem menos condições? A sua diferença colabora com isso?”
“Eu não tô aqui pra xavecar as pessoas e ficar dizendo representatividade importa, isso é pouco. Isso é superficial. A minha é a seguinte: a gente tem que converter o desconforto em ação e não somente pelo lucro, mas porque é certo. É possível lucrar fazendo a coisa certa.”
É preciso agir
Aqui, Emicida compartilha sobre sua vida como empresário. Na pandemia, ele abdicou de rever o IGPM (Índice Geral de Preços do Mercado); reestruturou sua empresa para que nenhum funcionário fosse demitido; teve 70% do seu faturamento reduzido com a ausência das apresentações ao vivo.
“Dá um friozinho na barriga, não dá? E se eu to aqui hoje trocando essa ideia, é pra dizer não só que é possível, mas pra dizer que é urgente. Não adianta falar sobre diversidade nenhuma, se a gente for só uma engrenagem no que existe de mais perverso na sociedade brasileira. Qual a vantagem de não parar se o destino à nossa frente for um abismo?”
Intenso, profundo e urgente. Assim terminamos nosso relato desse encontro memorável e tão importante.
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