Planejamento e cidades: na saúde e na doença
Grandes questões de saúde pública há muito deixam marcas nas metrópoles modernas. Em 1857 o médico John Snow produziu o mapa acima que retrata os casos de cólera (barras pretas) em Londres. A cidade, no meio da revolução industrial, passava por um crescimento populacional nunca visto. Este crescimento foi, contudo, acompanhado por uma epidemia de cólera e, até então, acreditava-se que a doença era transmitida por vias aéreas. A análise de Snow permitiu entender que as mortes estavam concentradas perto de uma bomba de água, contaminada por esgoto de uma fossa próxima. Sem a visão e reconhecimento do trabalho do médico, a necessidade de um novo sistema de esgoto na cidade talvez nunca teria sido identificada.
Problemas relacionados a saúde pública tornaram-se mais graves conforme as cidades ficaram maiores e mais densas. Se cidades maiores favoreciam trocas, diminuíam custos, impulsionavam a inovação, elas também traziam consigo consequências negativas como trânsito, poluição, lixo e… doenças. A ausência de boas condições sanitárias nas nossas cidades modernas fez com que engenheiros vissem a necessidade de incorporar técnicas sanitaristas em seus projetos urbanos. Nesse sentido, é difícil contar a história do desenvolvimento das cidades sem contar a história de suas epidemias.
São inúmeros os casos de transformações urbanas devido a questões sanitárias. O sociólogo Richard Sennett (2018) descreve, por exemplo, que observando a relação entre os materiais utilizados nas ruas e a qualidade sanitária das cidades, engenheiros de Londres no século XVIII sugeriram a mudança do calçamento por pedras polidas, mais fáceis de limpar os excrementos dos cavalos que ali andavam. Tal mudança não só tornou as ruas mais limpas, como contribuiu para uma mudança nos hábitos dos moradores, que, vendo uma rua sem dejetos, passaram a parar de jogar seu lixo pela janela (hábito comum na época).
Um caso mais famoso é o da reforma de Paris pelo barão de Haussmann. As epidemias de cólera e os constantes casos de doenças como tifo e o tétano na capital francesa alimentaram o desejo de Napoleão III por uma reforma urbana no século XVIII. No lugar das inúmeras casas amontoadas, sem saneamento, luz e circulação de ar, Haussmann criou avenidas largas, parques públicos e construções padronizadas com gás, esgoto, água encanada. A reforma, contudo, teve seu preço pago pelos mais pobres, expulsos para os subúrbios da Cidade-Luz.
Questões de saúde pública também nortearam o planejamento urbano das cidades brasileiras – foi o chamado urbanismo sanitarista. No século XIX, metrópoles que haviam passado por surtos epidêmicos (como Santos, Recife, Campinas, João Pessoa, Rio de Janeiro e São Paulo) foram alvos de planos urbanísticos de melhoramento e embelezamento, fortemente inspirados por concepções europeias e centrados na criação de metrópoles “ordenadas e limpas”.
Tais planos se materializavam em áreas verdes para purificar o ar, avenidas largas, limites de altura, recuos frontais e laterais nas edificações para facilitar a circulação dos ventos e a iluminação, drenagem de áreas pantanosas, etc (Faria, 2015). A salubridade não só ditou a forma das cidades como o interior das edificações. Muitas das medidas de higiene pensadas nessa época, como o revestimento de paredes para facilitar a limpeza ou a necessidade de meios de ventilação e iluminação em instalações sanitárias, permanecem até hoje em nossos Códigos de Obras municipais.
O discurso da necessidade de promover a saúde pública e a estética urbana também escamoteou uma política de marginalização de populações mais pobres e a segregação social. A reforma sanitarista de Pereira Passos no Rio de Janeiro, por exemplo, destruiu cortiços no centro da cidade, expulsando a população para o morro da Providência, primeira favela carioca. No caso de São Paulo, a chegada de populações mais pobres e doenças no centro da cidade fez com que a classe abastada se mudasse para um novo loteamento – Higienópolis, ou cidade da higiene, um dos primeiros bairros da cidade com esgoto e água encanada.
Hoje em dia a cólera, a pneumonia e outras doenças não nos preocupam tanto como antes. Contudo, isto não significa que as nossas cidades não continuem moldando e sendo moldadas por questões de saúde pública. A crise do Coronavírus é um grande exemplo disso. Se há três séculos as altas densidades urbanas já se mostravam como desafios à contenção de doenças, hoje, num mundo de 7 bilhões de pessoas em que mais da metade delas vive em centros urbanos, esse problema assume uma nova dimensão: a de uma pandemia.
A relação entre altas densidades e a disseminação de doenças é evidenciada em alguns casos concretos. Tomemos Nova York, o epicentro do Coronavírus nos EUA. A cidade com cerca de 8.6 milhões de habitantes até o momento possui mais de 100 mil casos da doença e quase 7 mil mortes. Los Angeles, por sua vez, cidade com metade da população, apresenta números cerca de 10 vezes menores – pouco mais de 9 mil casos e 250 mortos.
A diferença brutal entre os números pode ser explicada, em grande parte, pela densidade. Los Angeles é uma cidade espalhada de baixa densidade populacional (962 hab/km²), feita para o carro, onde poucas pessoas utilizam o módico sistema de transporte público e espaços públicos em geral. Nova York, em contraposição é uma cidade de alta densidade populacional (27mil hab/km²) onde pessoas compartilham o espaço o tempo todo, seja se deslocando por meio do transporte público, morando em prédios com muitas unidades e frequentando parques, praças e playgrounds.
Se a tal relação entre altas densidades e a disseminação de doenças é evidente em países ricos, essa questão ganha outros contornos quando pensamos em países de urbanização recente. Pense por exemplo nas comunidades mais pobres do Brasil. Se em Nova York a crise atingiu dimensões alarmantes, imaginemos na Rocinha, comunidade com a maior densidade demográfica do país (48mil hab/km²) e precária infraestrutura sanitária. O prognóstico é preocupante e a discussão sobre planejamento urbano e questões sanitárias no contexto de desigualdade e pobreza é mais do que central.
A crise e o isolamento social nos colocam inúmeras incertezas e temores, mas também nos convidam à reflexão. Como essa pandemia global pode impactar o planejamento urbano? Será que o aumento do trabalho remoto diminuirá a necessidade de deslocamentos diários de uma parte da população? Será que aplicativos de vigilância da população, utilizados por autoridades de países como China e Coréia do Sul após o lockdown, se tornarão uma constante na vida dos cidadãos? Será que novos hábitos de higiene e infraestruturas de saneamento irão emergir neste contexto? Será que as mudanças que estão por vir significarão mudanças para as camadas mais pobres ou mais uma vez a continuação de uma exclusão já existente? São inúmeras as perguntas sem respostas. Contudo, uma coisa é certa: nossas cidades não são (e nem serão) mais as mesmas.
Artigo escrito por Flávia Leite – Economista Sênior do DataZAP
Fontes
FARIA, Teresa .J.P. (2015). “Os projetos e obras do engenheiro Saturnino de Brito e mudança na paisagem urbana”. Geografia Ensino & Pesquisa, v. 19, n.especial p. 115-122. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/geografia/article/viewFile/19375/pdf
GAQUIN, Deirdre A., and MARY Meghan Ryan. (2015) County and City Extra. Annual Metro, City, and County Data Book. Bernan Press.
PIMENTEL, Márcia. (2013). O Cemitério Europeu virou Cidade Maravilhosa. Disponível em: <http://www.multirio.rj.gov.br/index.php/leia/reportagens-artigos/reportagens/469-rio-depassos-de-tumulo-de-europeu-a-cidade-maravilhosa>. Acesso em 07 de abril de 2020.
SENNET, Richard. (2018). Building and Dwelling: Ethics for the City. Farrar, Straus and Giroux.
SHENKER, Jack. (2020) Cities after Coronavirus: How Covid-19 Could Radically Alter Urban Life. The Guardian. Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/2020/mar/26/life-after-coronavirus-pandemic-change-world?CMP=Share_iOSApp_Other>.
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