Pandemia, crise econômica e mercado de trabalho
Não restam dúvidas de que a pandemia do coronavírus irá impor custos econômicos à sociedade. Como consequência da redução do dinamismo econômico em escala global, sentiremos esses efeitos diretamente no mercado de trabalho. Entender quais são os possíveis efeitos da crise associada à pandemia no mercado de trabalho é o que pretendo discutir nesse texto.
Inicialmente, é importante ter mente que, com o objetivo de proteger os mais vulneráveis, os governos ao redor do mundo vêm adotando diversas medidas sanitárias para combater a transmissão do coronavírus. O distanciamento social tem sido a forma mais eficaz encontrada para reduzir a velocidade de propagação do vírus e permitir que o sistema de saúde ganhe um tempo precioso e uma capacidade técnica e estrutural para conseguir realizar os atendimentos médicos necessários. Sem sombras de dúvidas, ações que encaram a questão da garantia das condições de saúde da população são coerentes, necessárias e bem-vindas.
Na esteira de toda essa crise sanitária, potenciais efeitos na economia são esperados. Devido à redução no ritmo da atividade econômica, aumentam-se os níveis de incerteza, as empresas perdem vendas e clientes, e com isso refazem suas expectativas de investimento. As famílias, por outro lado, têm dificuldades em manter sua renda, o que afeta seus orçamentos. De modo geral, a pandemia do coronavírus possui efeitos sistêmicos sobre as relações econômicas[1], que tendem a ser de curto prazo, caso sejam bem administrados pelas autoridades públicas.
Dentro dessa perspectiva, nos parece plausível admitir que a redução do ritmo de crescimento da economia (que já não andava a uma velocidade tão acelerada assim) irá influenciar o mercado de trabalho[2]. De forma geral, até antes da pandemia, o mercado de trabalho vinha se recuperando gradualmente dos efeitos da crise anterior, e passando a registrar aumentos paulatinos na criação de novas vagas de emprego, sendo puxado por todos os setores econômicos, mas com mais intensidade pelo de serviços. Essa última informação já deixa claro que o desempenho do mercado de trabalho não é homogêneo entre os segmentos da população e setores da economia.
Os efeitos da crise econômica nesse mercado atingirão os trabalhadores com diferentes magnitudes: alguns serão mais resilientes ao desemprego e algumas atividades econômicas acabarão sendo mais impactadas do que outras. De fato, crises econômicas impactam o mercado de trabalho em diversas dimensões, por exemplo, via aumento da informalidade ou de trabalhadores na condição de conta própria. A pergunta que emerge é: Quais são os trabalhadores mais resilientes aos efeitos da crise econômica?
Respondendo de forma direta a pergunta colocada no parágrafo anterior, vários estudos[3] ressaltam que trabalhadores com mais escolaridade são os mais aptos para se adaptar aos choques econômicos durante o período de crise. São eles os mais resilientes.
O mecanismo que justifica esse raciocínio é que a crise econômica, além de seu caráter imprevisível e gerador de desconforto, também traz oportunidades para novos aprendizados, possibilidade para desenvolver novas capacidades competitivas e aprender novas técnicas. Atrelado a esse processo de reinvenção, os trabalhadores mais qualificados reagem de modo mais rápido e a um menor custo a essas mudanças[4], e é exatamente por isso que possuem maior chances de manterem seus empregos.
Em termos do debate econômico, trabalhadores mais qualificados (i) tendem a se beneficiar de um mercado interno mais dinâmico; (ii) possuem uma rede maior de contatos e maior capacidade de aprender uns com os outros, capturando o conhecimento que “está no ar” e, portanto, interagindo e aprendendo mais; (iii) se beneficiam dos ganhos provenientes da presença das economias de escala e efeitos positivos de transbordamento de conhecimento.
O que esse raciocínio deixa claro é que existe uma relação intrínseca entre capital humano, nesse caso a escolaridade, e a resiliência dos trabalhadores em períodos de crises econômicas. Recentes análises, entretanto, sugerem outras formas de entendermos o papel desempenhado pelo capital humano: ao invés de considerarmos apenas a escolaridade formal como a única dimensão, é importante considerar o perfil de habilidades dos trabalhadores no mercado de trabalho.
A ideia básica é que o capital humano possui componentes específicos que não são inteiramente captados pela escolaridade. Nesse sentido, educação e habilidades não são equivalentes. É possível compreender a educação como parte de um processo que determina um conjunto amplo de habilidades do indivíduo.
Dessa forma, podemos elencar algumas habilidades que são relevantes para continuarmos a desenvolver nosso argumento. As habilidades cognitivas estão relacionadas ao raciocínio lógico, à capacidade de aprendizado e ao domínio da língua; as habilidades sociais são aquelas voltadas para as relações interpessoais no ambiente de trabalho, comunicação, inovação e criatividade; as habilidades motoras estão relacionadas com destreza manual e compreendem vários tipos de habilidades ligadas à força e à capacidade para desempenhar trabalhos exaustivos.
Em tempos de crise econômica, são exatamente os trabalhadores com habilidades mais alinhadas aos âmbitos cognitivo e, especialmente, o social aqueles que se adaptarão de forma menos tortuosa as novas circunstâncias. São eles os mais capacitados, dinâmicos, flexíveis, versáteis e, portanto, os mais resistentes ao desemprego.
Acredito que nesse momento é interessante discutirmos um pouco mais sobre as habilidades sociais, ou softs skills, como diriam em economia. Pessoas com essas habilidades desenvolvidas e equilibradas conseguem lidar com os desafios e trabalhar melhor em equipe. Além disso, conseguem lidar melhor com a pressão, enxergar soluções em problemas complexos, ser mais aberto a feedbacks e ter mais empatia.
É um indivíduo mais preparado para lidar com as turbulências inerentes aos períodos de crises econômicas. Ainda que o conhecimento técnico seja fundamental (e por isso nunca deixamos de lado a relevância das habilidades cognitivas), existe uma necessidade de um perfil de habilidades que vá além de uma boa formação. É necessário ser disruptivo, colaborativo e ter a capacidade de encontrar novos caminhos para driblar os efeitos da crise.
Estamos vivendo tempos em que o isolamento social tem incentivado cada vez mais as empresas a adotarem o uso de ferramentas digitais para promover reuniões on-line e o trabalho remoto. Se essa é uma tendência que irá permanecer no futuro do trabalho, é algo que não podemos afirmar aqui, mas com certeza são os trabalhadores com perfil cognitivo e social que mais se beneficiarão do uso intensivo dessas tecnologias. Capacidade de operar a tecnologia, inteligência emocional para lidar com o trabalho remoto, colaboração com os demais membros de equipe, empatia para superar obstáculos e dificuldades são características cada vez mais demandadas em tempos de crise econômica e aprofundamento do avanço tecnológico no mercado de trabalho.
É um contexto que exige que as empresas inovem, tragam novos métodos e ferramentas para se beneficiarem do que a tecnologia pode trazer de melhor. E os trabalhadores qualificados, com habilidades cognitiva e social se destacarão como os mais aptos a lidarem com essas mudanças – e serão, portanto, os mais resilientes aos efeitos dessa e de outras crises.
Artigo escrito por Edivaldo Constantino das Neves Júnior – Economista Sr. do Grupo ZAP
Referências
Correia, S., Luck, S., & Verner, E. (2020). Fight the Pandemic, Save the Economy: Lessons from the 1918 Flu (No. 20200327). Federal Reserve Bank of New York.
Glaeser, E. L., Ponzetto, G. A. M., & Tobio, K. (2014). Cities, skills, and regional change. Regional Studies, 48(1), 7–43.
Glaeser, E.L., & Saiz, A. (2003). The rise of the skilled city (NBER Working Paper No. 10191). https://www.nber.org/papers/w10191.
Hoynes, H., Miller, D. L., & Schaller, J. (2012). Who suffers during recessions? The Journal of Economic Perspectives, 26(3), 27–47.
Weinstein, Amanda; Patrick, Carlianne (2020). Recession‐proof skills, cities, and resilience in economic downturns. Journal of Regional Science, v. 60, n. 2, p. 348-373.
[1] Deve ficar claro que não existe dilema (ou no jargão econômico, trade-off) entre preservar a economia ou a saúde das pessoas. Ambas as questões devem ser encaradas de forma conjunta. Cabe as autoridades públicas conter a propagação do coronavírus assim como proteger a renda das pessoas, reduzir o desemprego e apoiar as empresas. Em artigo recente, Correia, Luck e Verner (2020), pesquisadores do Federal Reserve e MIT, em estudo para a gripe espanhola, argumentam que “cities that intervened earlier and more aggressively do not perform worse and, if anything, grow faster after the pandemic is over”.
[2] Ao ler esse texto, provavelmente o leitor já deve estar sentindo essa mudança…em seu home-office.
[3] O leitor pode consultar os textos de Glaeser e Saiz (2003), Hoynes, Miller e Schaller (2012), Glaeser, Ponzetto e Tobio (2014), Weinstein e Patrick (2020).
[4] Poderíamos expandir nosso argumento: lugares que concentram trabalhadores mais qualificados, também são mais resilientes aos efeitos de crises econômicas. A educação permite que as pessoas e as cidades se reinventem durante choques econômicos negativos, porque existem complementariedades significativas entre cidades e capital humano. Contudo, isso seria tema para outras análises.
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